para mim não há perigo
— Vai ter show em Nova Serrana.
— Quando?
— Dia 30.
— Mas em plena quarta-feira?
— Quinta é feriado.
— Então, vamos?
— Vamos!
— Onde é Nova Serrana?
— Sei lá!
— Não é aquela cidade cheia de fábrica de sapato?
— É, mas eu não sei onde fica.
— E agora?
— A gente dá um jeito.
— Vamos olhar no “Guia 4 Rodas”...
— Isso!
— Achei. É para os lados de Divinópolis.
— Beleza. Agora é só arrumar um jeito de ir
— Isso a gente resolve.
— A gente podia ir cedo pra lá.
— Quarta a gente tem prova na faculdade...
— Ah é...
Quando chegou a quarta-feira em questão, que era o 30 de abril de 2003, Fernanda e Liliane compareceram à faculdade, como de costume. Fizeram a tal prova e foram almoçar. Entre uma garfada e outra, milhares de confabulações. Já estavam na metade do dia e ainda não sabiam nada a respeito do show de logo mais. E aquele era o primeiro problema do dia. A única conclusão a que chegaram foi a de que seria sensato ir até o Hotel Mercure, onde os Titãs estariam — o que era a única informação concreta que elas tinham — e esperá-los chegar, a fim de descobrir qualquer detalhe que fosse sobre o show.
Já estavam a caminho do Mercure quando...
— Não!
— O que foi, Ferdi?
— Perdi, tudo!
— Tudo o quê?
— Minha carteira, meu dinheiro, tudo!
— Deve ter ficado na faculdade...
— Vamos voltar.
Voltaram em vão. Não encontraram a carteira em nenhum dos lugares por onde haviam passado. Aquele era o segundo problema do dia. Mas decidiram que “tudo bem”, Lili bancaria a amiga.
Enquanto esperavam pelos Titãs, no saguão do hotel receberam a confirmação do amigo Leandro, ou melhor, a não-confirmação. Ele não iria ao show e elas haviam perdido uma ótima companhia — e a melhor carona em potencial. E assim surgia o terceiro problema do dia...
Estavam digerindo o fato quando os Titãs chegaram. Cumprimentaram as meninas e foram para os quartos. Lauro não perdeu a oportunidade de hostilizar Lee, dizendo: “Não vai perder nenhuma bolsinha, hein”, numa referência ao episódio da “mala do Lee” que havia acontecido meses antes.
Lili e Ferdi se divertiam, sem esconder a tensão. Quando Fred surgiu no saguão, correram afoitas ao produtor para angariar o máximo de informações possíveis. Descobriram que o show seria de graça e em praça pública. Menos um problema.
Mas ainda faltava resolver o dilema do transporte. Olharam uma para a outra e depois para a fila de táxis estacionados em frente ao hotel. “Vamos fazer uma espécie de leilão”, decidiram. Reuniram todos os motoristas e propuseram: “Precisamos de alguém que nos leve em Nova Serrana e nos espere até quando decidirmos voltar. Quem faz o serviço por menos?”.
Mais e mais confabulações, até que acertaram com um deles. “Eu levo vocês. Vou abastecer meu carro e já volto. Fiquem aí”. Alguns minutos depois, o motorista voltou trazendo novidades. “Meninas, eu conheço dois rapazes que estão indo para Nova Serrana, não é táxi, mas vocês poderiam ir com eles”, propôs o cara, avisando que não ia mais poder levá-las. “Ah, tudo bem”. Ferdi e Lili só queriam chegar a Nova Serrana, não importava por quais métodos.
Loucas! Depois de meia hora, lá estavam as duas a bordo de um Monza, com dois rapazes desconhecidos que, para piorar a situação, decidiram passar na casa de um deles antes de pegar estrada. Enquanto estavam sozinhas no carro, esperando os moços terminarem de se arrumar, decidiram tirar uma onda com eles. Começaram a dizer que eram paulistas, e estavam hospedadas no Mercure. Uma era santista e a outra corintiana, com direito a sotaque e tudo. A graça da brincadeira acabou quando descobriram que elas e os rapazes estudavam na mesma faculdade. Mico! Teriam que passar o resto do curso evitando se encontrar com as figuras.
Entre centenas de buracos, numa estrada tão cheia de curvas quanto escura, chegaram em Nova Serrana. De fato, o que não faltava ali eram fábricas de sapatos. Seguiram o fluxo e foram parar na praça onde seria o show.
Lugar estranho. Gente esquisita. E eis o quarto problema. Ao som dos primeiros acordes, a corda — sim, uma corda, e não uma grade, como acontece normalmente — que fazia o isolamento entre público e palco foi ao chão. Empurra-empurra, bêbados, socos, andarilhos, pontapés, malucos, puxões de cabelo. Tudo isso, do início ao fim do show. Ferdi e Lili mal conseguiram olhar para o palco. Aquele ficaria marcado como o show mais desastroso para a dupla.
Os Titãs mal se despediram e lá estavam elas com os pés imundos de areia, descabeladas e cheias e hematomas à procura dos... “Como é que eles se chamam mesmo?” Só mesmo uma sacudida como aquele show para fazê-las caírem na real sobre o risco que estavam correndo. Estavam numa cidade desconhecida, com dois caras que nem sabiam o nome. Mas aquilo não era hora para ter medo. Era preciso voltar para Belo Horizonte, afinal. Temeram encontrar os seus acompanhantes bêbados, mas, felizmente, eles estavam dormindo inocentemente dentro do carro.
Voltaram. E nem as turbulências do dia anterior impediram que elas marcassem presença no saguão do Mercure na manhã seguinte. Conversaram, tiraram fotos, comentaram o show, importunaram Charles Gavin com perguntas esdrúxulas. “Você sofre de mudez matinal? Você tem gingado? Posso ver sua carteira de identidade?” E se despediram da banda...
Na volta para casa, combinaram de se encontrar com o pai de Fernanda em um shopping. Enquanto subiam por uma escada rolante para chegarem ao lugar combinado, a bendita escada estragou. Elas estavam exaustas, não tinham energia nem para praguejar contra o ocorrido. Só conseguiram rir e terminar subir os degraus restantes, bem devagar. Definitivamente, Murphy — aquele das famigeradas “leis” — estava com elas.
Tudo o que elas queriam, naquele momento, era dormir. Talvez fosse o caso de tirar umas férias dos Titãs. Entraram no carro e, no mesmo instante, o rádio começou a tocar: “Isso que acontece com a gente, acontece sempre com qualquer casal...”. Logo se alvoroçaram, com direito a flashback de todas as emoções. Não, elas não agüentariam, mesmo, tirar as tais férias...
“Sou mais forte, para mim não há perigo” – Querem acabar comigo (As Dez Mais – 1999)
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