Wednesday, September 27, 2006

Texto 22

Agora sinto minha tumba...
Agora o peito a retumbar


Era 12 de setembro de 2003. A cidade mineira de Formiga, a 196 quilômetros da capital Belo Horizonte, se preparava para realizar seu principal evento — uma coisa “a la” Barretos, com rodeios, barraquinhas, gente munida de chapéus, esporas e afins.
Ferdi e Lili se apressavam para botar o pé na estrada: arrumar mala, comprar passagem, dar um jeito no visual, ensaiar todos os passos, prever todos os imprevistos — tudo ao mesmo tempo agora. O destino era justamente Formiga e sua tal festa. Não, não era exatamente por causa de toda a movimentação country, apesar de ter algo a ver com ela. Apenas uma coisa seria capaz de levá-las até aquele programa insólito: show dos Titãs, claro.
A aventura tinha alguns “poréns”: o acesso era complicado (não havia ônibus de viagem direto de BH a Formiga), a dupla não tinha nenhum conhecido dentro daquele perímetro urbano além da própria trupe titânica e nem havia maiores referências sobre hospedagem (“será que há hotel decente nesse lugar?”, se perguntavam). Quase perdidas, enfim. O que era razão suficiente para fazer com que elas desistissem virou impulso para que arrumassem outras saídas para o problema.
Foi aí que se lembraram: a cidade mais próxima era Divinópolis. Lá, conheciam tudo: hotel, gente, meio de transporte. E, para completar, um detalhe: todas as pessoas que elas conheciam na região — leia-se: Titãs e sua trupe — iam ficar em “Divi”, então, por que ficar entre desconhecidos se há haveria conhecidíssimos por perto? Lá foram elas: Viação Teixeira, 210, JB Palace Hotel.
Mal se instalaram e já estavam em processo de cair na estrada novamente — o show era em Formiga e, não, em Divinópolis, afinal. Trataram logo de agilizar o meio de transporte: um taxista do próprio hotel que, por uma módica quantia, as levaria para a cidade vizinha e as traria de volta para o conforto do JB.
Acerto feito, lá foram os três: a dupla dinâmica e seu motorista particular. Tudo parecia perfeito, se não fossem dois pequenos detalhes: uma chuva torrencial que insistia em cair e uma estrada esburacada. A situação era ideal para que Lili já começasse com seus pensamentos fatalistas e quase surtasse por causa de seu pânico de acidentes, mas Ferdi tratava de manter o clima otimista. E foi nesse astral empolgado — exceto pela preocupação com o estado que seus cabelos ficariam sob chuva, claro — que venceram os 72 quilômetros que separam a cidade do show e a cidade do hotel.
Já em Formiga, tudo perfeito. Sãs, salvas, sem chuva — os cabelos agradecem! — e com um show inteiro pela frente. Nada poderia ser melhor. Será? Não só poderia como foi: além das já tradicionais e apreciadas performances, a trupe titânica preparou uma surpresa. Como aquele tinha sido o dia de lançamento oficial do primeiro single do então novo álbum, Como Estão Vocês?, a banda resolveu tocá-lo ao vivo, pela primeira vez. Mal começou Eu não sou um bom lugar, Ferdi e Lili enlouqueceram. Se já estavam empolgadas com tudo aquilo que já conheciam de cor e salteado (anos de estrada, afinal), imagina ali, sendo as primeiríssimas a ver e ouvir o novo trabalho, assim, in loco? Como todo jornalista que se preze, elas adoram conseguir “furo de reportagem”.
Para fechar o momento-show, não poderia faltar um fato nonsense, ainda mais levando em conta quem estava no palco — Titãs — e quem estava na platéia — Ferdi e Lili. Do nada, alguém surge no meio do público com um manequim — isso mesmo, daqueles de colocar roupas à mostra em vitrines — sem braço, sem cabelo, mas de chapéu. Ninguém entendeu nada, claro. Mas era dia de festa e no fim das contas, a boneca “subiu” ao palco e até participou dos agradecimentos ao final do bis.
Titãs fora do palco, era hora de zarpar para Divinópolis. Foram ao local combinado e lá estava o motorista particular. Iniciaram logo a viagem de volta. Mais 72 quilômetros, mas, dessa vez, sem chuva. “Menos mal”, pensaram elas. Ledo engano...
Depois de tanta euforia, estavam as duas cansadas. E é sempre assim: pulam, cantam, riem, hostilizam, confraternizam e isso tudo dá aquela vontade de tirar uma soneca. É praticamente incontrolável. Ainda mais na estrada, com o balanço do carro. Cochilaram.
Eis que, num momento de sopro divino, elas despertaram. Lili acordou com uma alucinação — ela e suas alucinações pós-show... — de que o motorista estava falando alguma coisa. Perguntou o que era várias vezes, mas o cara não respondia. “Ele não está falando nada, é só viagem da sua cabeça”, explicava Ferdi à amiga. Mas Lili não se convenceu, achou aquilo tudo muito estranho — principalmente o olhar perdido do homem no retrovisor.
Ficaram acordadas — quer dizer, elas, as passageiras. O motorista, uns cinco segundos depois do “despertar” das garotas, simplesmente “apagou” e já estava saindo da pista, indo quente na contramão.
Pânico. As garotas gritavam, berravam o nome dele, o sacudiam. Foram segundos desesperadores até que o motorista, finalmente, voltasse a si — e, o mais importante de tudo: para a pista certa.
Desse momento em diante, a viagem se resumiu em uma tensão nunca antes sentida. Ficaram as duas o tempo inteiro fazendo com que o motorista se mantivesse acordado e, conseqüentemente, elas pudessem se manter vivas e intactas. Os quilômetros finais duraram uma eternidade.
Quando pisaram no hotel, uma sensação de alívio e segurança tomou conta. Estavam ambas passadas e pálidas de susto — Lili, que já é mais do que branca, estava praticamente transparente.
Não bastasse a quase-morte, ainda tiveram que escutar poucas e boas. Quando os Titãs e seu produtor, Fred, ficaram sabendo, trataram logo de dar aquela lição de moral. "Vocês têm que vir mais devagar", diziam alguns. “Vocês são loucas”, sentenciavam todos.
Sim, elas eram loucas e estavam ainda assustadas, agradecendo por ter sido "só" um susto e por estarem ali, vivas para ouvirem as broncas. Mas não ficaram traumatizadas: a combinação “estrada mais madrugada mais sono mais motorista imprudente” ainda se repetiu por muitas outras vezes. Elas são loucas — e destemidas. Definitivamente.

“Agora sinto minha tumba... Agora o peito a retumbar” – Agora (Tudo ao Mesmo Tempo Agora – 1991)

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