Wednesday, September 27, 2006

Texto 26
Eu sei que ela
pode te prender


Os tempos eram bem outros. Fernanda e Liliane não tinham mais que passar por aqueles longos períodos de seca titânica, esperando que os ídolos viessem tocar em Belo Horizonte, o habitat natural da dupla. De posse das respectivas independências, elas podiam sair em sua própria turnê. Cidades próximas, interior de Minas, outros estados... Qual seria a próxima parada?
Mas, o 23 de abril de 2004 nem exigia maiores esforços viajantes. Tinha show dos Titãs, sim, mas não seria preciso ultrapassar o perímetro urbano da capital mineira para vê-los. Era só chegar ali no Marista Hall que já estaria tudo resolvido. Dessa vez, quem acabou cruzando fronteiras foi uma turma de amigos cariocas. A confraternização com aquelas pessoas tão queridas, mas geograficamente distantes, era mais um motivo para fazer daquele um show especial. A bordo de dois carros — um simpático Uno e um “possante” Santana , uma comitiva de dez pessoas cruzou a avenida Nossa Senhora do Carmo e fez horrores na platéia enquanto os Titãs detonavam no palco com uma apresentação cheia de energia.
Fim de show. Suados, descabelados, cansados, a trupe se divide para ir embora. Seis no Santana, quatro no Uno. Santana arranca na frente, com cinco forasteiros como passageiros e uma nativa, Fernanda. Liliane e mais três conterrâneos iam logo atrás, no Uno. Ainda na Nossa Senhora do Carmo, Liliane, uma atleticana fanática, avista um bar cheio de cruzeirenses, seus arqui-rivais futebolísticos. Do banco do passageiro, onde estava displicentemente sentada, Liliane não se detém e grita: “BICHAS!!!”. Tudo era, na verdade, uma grande brincadeira para hostilizar Leandro, o amigo que estava bem a seu lado e servia de motorista naquela noite. Entre risadas e troca de farpas amigáveis, os tripulantes do Uno continuavam seu rumo, logo atrás do Santana. Eis que sirenes e gritos de policiais os obrigaram a parar.
— Todo mundo! Desce do carro! Mão na cabeça!
Sem entender nada, descem Liliane e seus três companheiros, enquanto, sem perceber nada, a turma do Santana continua seu caminho. Três policiais apontam as armas contra o quarteto. Começa o interrogatório.
— Quem é que tava gritando da janela?
A interrogação continuava no ar. Um dos “delicados” policiais se aproxima de Kelly, uma das outras passageiras, e a aponta como a delinqüente. Numa espécie de banco dos réus, ela tenta protestar. Em vão: tinha conquistado uma afonia de tanto gritar no show que acabara de sair. Foi aí que Liliane teve um clique. “Quem gritou na janela?”, repetiu a pergunta para si mesma, em silêncio. Teve uma espécie de flashback. Era ela própria quem tinha gritado. Percebendo a confusão em que a amiga estava prestes a se meter, Liliane resolveu assumir logo a culpa. “Fui eu”, declarou, totalmente decidida — o que não era bem sinônimo de “destemida”.
Momentos de tensão. Enquanto, totalmente apavorado, o motorista Leandro confessava que havia, sim, bebido uma ou duas cervejas, Liliane tentava convencer dois dos policiais de que, não, não era baderneira. E que, não, ao contrário do que eles pensavam, ela não tinha os xingado. “Eu não vi que vocês estavam fazendo blitz. Não era para vocês, era uma brincadeira entre cruzeirenses e atleticanos. Era uma brincadeira, tinha um bar, uma mesa cheia de cruzeirenses. Eu, atleticana. Leandro, cruzeirense. Eu só brincando. Não vi vocês. Nunca que eu iria ofender a polícia. Imagina, logo eu, que trabalho em jornal, e conto tanto com a ajuda de vocês da polícia, vocês são tão bons, tão corretos, nos informam tanto, protegem...” — só faltou fazer um coração com os dizeres “I love PM”. E lá se foram, mais ou menos, uns 40 minutos de um blábláblá sem fim, que, porém, não chegava a ser falso. Realmente, Liliane não tinha os visto. Não seria louca o suficiente para ofender policiais. Desacato à autoridade não está dentro de suas ilicitudes favoritas. Já a parte do “ah, como eu adoro a polícia... como vocês são fundamentais no processo de construção da notícia”... Mal sabiam eles que Liliane nunca lidava com soldados — os evitava, aliás — e em seu trabalho, no caderno de cultura de um grande jornal, eles eram ignorados solenemente, sem a menor culpa.
Sentindo-se uma bandida, Liliane usava de suas técnicas mais mexicanas de interpretação para convencer os policiais de que ela e seus amigos eram pessoas de bem que tinham apenas saído de um show de rock. Não tinha megafone, mas era tal como aquelas cenas de filme em que os representantes da lei e da ordem negociam com os marginais a rendição, a libertação. Mais uns 20 minutos e a sentença: “Vão logo! Direto para casa! Sem gritos e com a janela fechada”. Nunca quatro pessoas se enfurnaram tão rápido dentro de um carro. Seguindo direitinho o que o os moços de farda mandaram, foram para casa, encontrar com os seis amigos do Santana que, sem saber de nada da confusão que se passava, continuaram o caminho. De todas as recomendações, só não seguiram uma — era impossível não gritar enquanto colocavam para fora, em forma de música, o sufoco recém-passado. “Polícia para que precisa?”, gritava o quarteto, em uníssono. Mas com as janelas bem fechadas...

“Eu sei que ela pode te prender” – Polícia (Cabeça Dinossauro – 1986)

1 Palavras:

Anonymous Anonymous said...

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4:23 AM  

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