que eu vou ficar com o meu
As quintas-feiras sempre foram os dias mais apertados para Liliane desde que ela começou a trabalhar no caderno de cultura do jornal O Tempo. Se já era uma correria danada normalmente, quando ela tinha que ficar só na redação, naquela quinta, 8 de julho de 2004, a coisa seria ainda pior, visto que uma matéria a esperava num lugar bem longe daquele em que estava acostumada a trabalhar diariamente. A pauta tinha chegado às mãos de Liliane no dia anterior. Por um acaso, ela se atrasara para ir embora do jornal. Estava no telefone conversando com o um funcionário da Belotur quando um dos redatores chegou para a editora falou que um cara da Jovem Pan tinha ligado para saber se O Tempo se interessava em cobrir um show de uma grande banda nacional na casa de uma fã que tinha sido premiada através de uma promoção deles.
Seria mais uma cobertura normal se a banda em questão não fosse Titãs e se Liliane não estivesse por perto. “Adoro Titãs”, foi o que Liliane balbuciou sobre o assunto, enquanto esperava o cara da Belotur achar um número de telefone que ela precisava. Ao ouvir o comentário, a editora se virou e determinou “então é você que vai cobrir”. Pânico. Liliane deixou o cara do outro lado da linha no vácuo por alguns segundos. Ela iria cobrir Titãs! Foda-se a Belotur! Liliane tinha muito com o que se preocupar agora que tinha essa pauta. E a primeira providência já estava sendo tomada: ligar para Fernanda e convocá-la para ir junto, como uma espécie de auxiliar.
Eis que chegou quinta-feira, o dia do evento. E lá se vão Liliane, Fernanda, e Rejane, a fotógrafa. Chegando na casa de Letícia, a premiada, sentia-se um clima estranho, nada comum para fãs dos Titãs. A sala estava recheada de “patricinhas” de sandálias de salto-agulha e chapa no cabelo. A própria Letícia também se enquadrava nesse perfil.
Liliane e Fernanda, sentindo que aquilo ali era uma farsa, começaram a disparar perguntas. “Qual titã você mais gosta?”. “Você se inscreveu muitas vezes?”. “Você vai a todos os shows deles aqui em Belo Horizonte?”. As respostas eram sempre “ah, eu gosto de todos... ah, eu não vou a todos os shows, não...” Detalhe: quem os fãs belo-horizontinos sabem que “ir a todos os shows que os Titãs fazem aqui” significa, no máximo, vê-los duas vezes por ano, isso nos tempos de vacas gordas. E, assim, Lili e Ferdi iam confirmando a tese. Se entreolhavam e concluíam, sem precisar dizer palavra: “essa menina não é fã, nada”. Modéstia às favas, a dupla conhecia praticamente todos os fãs da banda que eram conterrâneos, principalmente os mais fiéis. Essa tal de Letícia, elas não conheciam.
Pensando nas funções jornalísticas que teria que cumprir depois, Liliane já estava ficando um tanto preocupada. A menina não tinha nada de emocionante, não tinha nenhuma reação que valesse a pena narrar na matéria. “Meu Deus, eu tenho uma contracapa para redigir e nada de relevante acontece”, pensava Liliane “Também o que eu poderia esperar de uma pessoa cuja cadelinha poodle tem o nome de SANDY?”, completava. Bateu aquele desespero. Mas aí os Titãs chegaram descontraindo geral e tudo mudou.
Branco Mello estava empolgadíssimo. Já chegou apresentando todo mundo, fez a maior festa. Paulo Miklos tirou os sapatos e colocou os pés no sofá. Tony Bellotto abusou dos solos e arrancou os tradicionais gritinhos femininos de “lindo”. Charles Gavin sentou-se no chão e ficou fotografando. Sérgio Britto, “hostilizador” por natureza, foi "um pouco mais irônico e mais sarcástico" pedindo para a platéia nada cantante se calar para que ele pudesse cantar. E assim, os cinco titãs, junto de Emerson Villani e Lee Marcucci agitaram cantando oito músicas daquelas mais conhecidas.
Apesar de só terem rolado hits, nem todas as pessoas sabiam do que se tratava, o que acabou rendendo momentos hilários para Liliane e Fernanda, que se orgulhavam de serem as únicas ali que poderiam ser chamadas de “fãs”. Elas até tentavam se conter, afinal Lili estava mesmo trabalhando. Mas quem disse que conseguiram? Todos os titãs, o Emerson, o Lee, a galera da produção, todos, todos chegavam até elas com aqueles cumprimentos familiares. Liliane, já nervosa com a “pseudo-fã”, começou a hostilizar total. “Canta 'O Camelo e o Dromedário”, gritava. Paulo olhava com aquela cara de "você não perdoa, hein?". O showzinho doméstico rolou por cerca de uma hora. Depois de muitas pérolas titânicas e muitos “foras” da platéia burguesa, seguiram todos — Liliane, Fernanda, Titãs... — para Ouro Preto, onde um público cheio de fãs de verdade esperava ansioso na praça Tiradentes por um grande show titânico, com tudo que se tem direito.
Depois de se esbaldarem em Ouro Preto, era hora de voltar para casa. Aquela madrugada ia ser curta para repor todas as energias que foram gastas do dia anterior. Já era sexta-feira e Liliane, em poucas horas, tinha que estar na redação de O Tempo para escrever sua matéria. A correria tinha sido grande, o desgaste também. Mas, no fim das contas, ela só queria mesmo que chegasse a hora de escrever e relatar detalhes que só uma fã poderia ter percebido. E assim, no dia 10 de julho de 2004, o jornal O Tempo, com a assinatura de Liliane Pelegrini, publicava toda a saga daquela quinta-feira.
“Fique com o seu bom gosto que eu vou ficar com o meu” – Bom Gosto (A Melhor Banda de Todos os Tempos da última Semana – 2001)
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